"Eu canto em português errado. Acho que o imperfeito não participa do passado" (R.R)

.

6 de março de 2011

Por aqui já não é novidade a minha admiração por L. F. Veríssimo, pela sua incrível habilidade de criar e recontar situações e pela maleabilidade com a qual ele conduz tudo o que escreve, em especial as crônicas. Segue então uma das minhas preferiidas que parece fazer jus a muito do que tem acontecido ultimamente. Essa vem direto do livro - A mesa Voadora.

Voracidade.

Estávamos num cinema nos Estados Unidos. Na nossa frente sentou-se um americano imenso decidido a não passar fome antes do filme acabar. Trouxera do saguão um balde — literalmente um balde — de pipocas, sobre as quais eles derramam um líquido amarelo que pode até ser manteiga, e um pacote de M&M, uma espécie de pastilha envolta em chocolate. Intercalava pipocas, pastilhas de chocolate e goles de sua small Coke, que era gigantesca, e parecia feliz. Fiquei pensando em como tudo naquela sociedade é feito para saciar apetites infantis, que se caracterizam por serem simples mas vorazes. As nossas poltronas eram ótimas, a projeçáo do filme era perfeita, o filme era um exemplar impecável de engenhosidade técnica e agradável imbecilidade. Essa competência é o melhor subproduto da voracidade americana por prazeres simples. O que atrai nos Estados Unidos é justamente a oportunidade de sermos infantis sem parecermos débeis mentais, ou pelo menos sem destoarmos da mentalidade à nossa volta, e de termos ao nosso alcance a realização de todos os nossos sonhos de criança, quando ninguém tinha senso crítico ou remorso.

Mas o infantilismo dominante tem seu lado assustador. Nenhum carro de polícia ou de socorro do mundo é tão espalhafatoso quanto Os americanos. Numa sociedade de brinquedos caros, quanto mais luzes e sirenas mais divertido, mas o espalhafato também parece criar uma necessidade infantil de catástrofes cada vez maiores. O caminho natural do apetite sem restrições é para o caldeirão de pipocas, para a Mega Coke e para a chacina. Existe realização infantil mais atraente do que poder entrar numa loja e comprar não um brinquedo igualzinho a uma arma de verdade mas a própria arma? Nos Estados Unidos pode. De vez em quando uma daquelas crianças grandes resolve sair matando todo mundo, como no cinema, mas a maioria dos que compram as armas e as munições só quer ter os brinquedos em casa.

Vivemos nas bordas dessa voracidade ao mesmo tempo ingénua e terrível, mas ela não parece entrar nas nossas equações económicas ou no cálculo dos nossos interesses.

Somos cada vez mais fascinados e menos críticos diante do grande apetite americano e de um projeto de hegemonia chauvinista e prepotente como sempre, agora camuflado pelos mitos da "globalização". Quando a prudência ensina que se deve olhar os americanos do ponto de vista das pipocas.

(A mesa Voadora - Luis Fernando Veríssimo)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Dá uma olhada

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...